Krishna em O Mahabharata [trad. Jean-Claude Carrière]

"Resiste ao que resiste em ti.
Sê tu mesmo"

quarta-feira, 15 de julho de 2009

por não nos conhecermos
tenho a impressão de ainda não existires
tenho a impressão de não transitares pelo mundo
como transitamos confusos todos os demais

te imagino embalado num sono profundo
num invólucro pegajoso e transparente
membros retraídos, posição fetal
quase não respiras, não sonhas, não sabes

por aqui o dia amanhece chuvoso
vou ao trabalho, ao cinema, ao supermercado, ao aeroporto
não nos cruzamos em nenhum desses lugares
tu não transitas por eles

haverá o dia em que despertarás
e teremos a surpresa de nos esbarrarmos
para descobrir que eu também estive numa bolha
enquanto me procuravas

domingo, 12 de julho de 2009

alívio

não sei o que me deu, mas foi uma vontade meio kamikaze de falar tudo. aí resolvi falar. aí meu coração disparou e quase saiu pela boca, minha mão gelou, mas ainda assim eu falei. intimidade mediada é muito mais fácil. primeiro ficamos os dois super sem graça. aí ele falou que meio que já tinha reparado. aí eu achei ele um cara mais legal ainda por já ter reparado e ainda assim não ter saído correndo. aí eu falei que só estava contando porque queria que fôssemos amigos, bons amigos. e ele disse "que bom" e deu um sorriso simpático. aí conversamos mais um pouco sobre isso, ele disse também que tinha se identificado comigo e que achou que podia parecer que estava me dando mole, mas isso foi da cabeça dele, porque não pareceu mesmo. aí depois mudamos de assunto e continuamos conversando normalmente.

terminada a conversa, eu estava meio eufórica. um sorriso sincero, bastante nervoso, é verdade, as mãos ainda geladas, mas nenhum pingo de decepção. não falei esperando ouvir nada diferente do que ele disse. pelo contrário. tive medo de que ele fosse reagir mal, sumir, fazer de conta que o computador deu pau e nunca mais olhar na minha cara. a naturalidade com que conseguimos lidar com a situação anuncia a boa amizade que finalmente poderá florescer.

não sei porque eu funciono desse jeito. mas sinceridade pra mim é um imperativo. é muito difícil manter uma conversa com alguém e não dizer tudo o que me vem à cabeça. seria insustentável continuar convivendo com ele sem ter certeza de que ele sabia. e seria impossível também superar, esquecer, deixar de criar expectativas, sem abrir completamente o jogo e ter certeza de que ele não tinha um pingo de interesse. agora eu posso dormir em paz e não ficar mais nervosa a cada vez que a gente for se encontrar ou a cada vez que ele vier me procurar. e se por algum acaso do destino que, vai saber, sempre nos prega peças, ele um dia sentir uma pontinha de curiosidade de saber como poderia ter sido, meu gesto deveria deixá-lo confortável pra dizer tão logo a vontade lhe passe pela cabeça. mas repito, não tenho nenhuma expectativa em relação a isso.

qualquer pessoa pra quem eu contar (e escrever aqui não deixa de ser sempre uma forma de contar pro mundo inteiro) talvez me ache completamente maluca. mas não sei, acho que tem a ver com o meu modo de ser 8 ou 80. se eu gosto de alguém, eu gosto muito. e se eu me disponho a esquecer, eu tenho que passar por um processo muito radical. como cortar relações com ele não era uma opção, visto que eu realmente aprecio a amizade que brotou espontaneamente, minha única alternativa era desabafar pra atração sair de mim junto com as palavras.

o que elas dizem

Uma diz que as pessoas não sabem mais se relacionar. Que vê as amigas solteiras, os caras que de tanto medo nem pegam o telefone, ela diz que tem medo pela própria filha, de que daqui pra frente ninguém se relacione mais. Minha experiência pessoal me leva a concordar a princípio, já que de fato há tempos ninguém se comove a ponto de se dar ao trabalho de telefonar nem para saber se estou bem. Mas em contraponto, me vêm logo uns tantos casais que conheço ou que já conheci, com seus filhos saudáveis de bochechas rosadas, vivendo vidas amorosas em harmonia com os demais seres. Nem todos são de outras gerações e há umas tantas pessoas na minha faixa etária que compartilham desses valores, encontro com eles por aí, sem nem saber o nome de todos, sem nem precisar ir tão longe de casa.

Aquela acrescenta que cresce no mundo o número de pessoas assexuadas, aquelas pessoas que simplesmente não sentem falta de sexo, para quem sexo simplesmente não importa. Nessa hora todas as outras concordam que isso é um absurdo e que assim onde vamos parar? E concordam ainda que quando a vontade aperta o jeito é sair e resolver isso rápido, sem se conformar com qualquer coisa, mas que não dá pra ficar sem. Eu não digo nada, mas me ocorre que venho me sentindo melhor desde que deixei de sair atrás de resolver esse assunto e que não é que não me dê vontade às vezes, mas que me dá sim um contentamento saber que a vontade passa e que é possível sentir cada vez menos esse impulso e encontrar satisfação em tantas outras coisas que hoje me parecem sim mais relevantes.

Uma outra diz que a nossa geração está muito estranha, que tem alguma coisa muito errada, que ela se esforça para manter o contato social, mas que é difícil, que as pessoas só soltam coisas pontuais, perguntam o que você faz, e twittam coisas, mas que é tudo supercifial demais, que as aparências importam demais. Diz que acha muito estranho certas posturas renunciantes, auto-declaradas espiritualizadas, como a de um sujeito com quem ela cruzou em algum grupo de amigos, que se coloca em outro plano, supostamente realizado em si mesmo, observando os outros de longe, de cima, sem se envolver, se bastando. A isso acrescento que não há nada de espiritualizado em alguém que acredite olhar alguém de cima, pelo contrário, espiritualizado é aquele que vê Deus por trás de todas as máscaras e que portanto olha a todos como se estivesse diante do espelho e com o mesmo amor nesse olhar bastando que esteja diante de si um ser vivo. E que o caso em questão se assemelha mais àquelas pessoas a quem o sujeito se considera oposto, naqueles que trabalham freneticamente, compram freneticamente, bebem freneticamente, trepam freneticamente e se regojizam em acreditar que se bastam, que tudo aquilo que lhes falte poderão comprar. Ela diz também que é importante participar das interações sociais, que a renúncia é a negação de parte da condição humana e eu então não sei dizer se tais interações, tão moldadas pelo tempo em que se apresentam podem ser consideradas parte da condição humana, e tenho a intuição de dizer algo mais, mas não chego a desenvolver.

Aí vem ela e muito francamente se pergunta se não teria sido sempre assim, que algumas das pessoas sempre se sentiram presas nos relacionamentos e desejavam libertar-se mas não podiam devido às amarras sociais que lhes obrigavam às instituições como a família nuclear, o casamento, assim como a missa de domingo. E que algumas outras sempre se sentiram inclinadas a viver com um só parceiro por toda a vida, ou que nem precisaram sentir qualquer inclinação, que foi essa sua natureza primeira e assim se comportaram a vida toda. Com ela eu tendo a concordar de todo. Acredito que nessa definição turva que deve haver da condição humana é preciso não esquecer de dizer que as pessoas são bastante diferentes e que há sim muitos condicionamentos históricos e culturais, mas que há também índoles, inclinações, caráteres, vai saber... E que por mais ou menos raros que se tornem alguns tipos em determinados lugares ou épocas, o que mais há é variedade, mas essa variedade não nos individualiza a ponto de que seja impossível encontrarmos pares. Por mais medo que sintam alguns de ligar no dia seguinte, por mais que outros façam questão de dar festas em seus grandes apartamentos de solteiros, haverão sempre aqueles que experienciarão a felicidade na vida em comunidade e que terão alegria em dar as mãos sem qualquer malícia e entoar melodias que os elevem e que dentre eles alguns voltarão para casa tranquilos e satisfeitos com o divino que sabem habitar em si, mas outros ainda encontrarão no grupo olhares que falarão com num outro registro de intimidade e então decidirão entrelaçar suas vidas até enrugarem suas mãos que permanecerão carinhosas.