Vez por outra aparece algo que tranquiliza esse ir e vir de sentimentos. Uma paixão, um objetivo, um querer maior que prevalece sobre os outros e onde sou capaz de concentrar energias e que até mesmo me leva a renunciar a tantas outras coisas, me faz esquecer delas, sua importância se desvanece e minha existência se pacifica.
Então a nuvem leitosa de possibilidades se dissolve permitindo que meus olhos descansem e vejam a beleza em cada coisa do mundo, principalmente nas que estão perto, as dúvidas se desembaraçam e deixam o coração bater firme e tranquilo, o fio da respiração se torna constante e me sinto segura de mim. Nada me atormenta, não tenho a inquietação de ir a lugar nenhum, não anseio pela conquista de nada nem de ninguém. O mundo inteiro já me pertence.
Mas eis que algum dia amanhece nublado e eu não sei dizer o que é, quando ou onde, mas alguma coisa está fora do lugar. No princípio é como uma mosca zumbindo na orelha de alguém que dorme e não se dá conta, é como uma dor de cabeça tão leve que não se denuncia, mas que perturba, pouco a pouco descompassa a respiração, faz o dia parecer muito longo e a noite muito curta, traz à tona a memória de lugares e pessoas e dá na telha de querer estar com eles. Vão voltando desapercebidamente as dúvidas, entram pela porta dos fundos sem acender a luz e de repente já se instalaram de novo todas as angústias, os medos e a mente volta a encher-sede pensamentos repetitivos que expulsam o ânimo até que os braços e pernas não tenham mais coragem de deixar a cama. O peito se enche tanto de quereres, de frases incompletas, de não saberes, que o espírito se encolhe e se protege da violência desses eus que se debatem e então, sem mais sentir a presença gentil desse espírito em si, sem conseguir alcançá-lo nessa floresta sombria e úmida, a existência se turva outra vez em incerteza e não-estar. O corpo toma controle e a mente se pune, o corpo se entope para que a mente não pense, mas ela pensa ainda mais, dá voltas e voltas até que o corpo tenha vertigem e desabe.
Não adianta esperar que se abra novamente o dia. De nada adianta implorar, o rosto retorcido e os ombros crispados, os joelhos afundados na lama, para que cesse a chuva e que brilhe eternamente o sol. O sol sobe e desce nos céus e não há quem possa controlá-lo. O sol está fora de mim.
É preciso ter coragem de ir além das dúvidas, de renunciar a elas. Os conflitos não podem ser resolvidos porque não são reais, eles podem apenas ser dissolvidos, superados. É preciso assumir que não se tem controle sobre nada que esteja fora de si e repetir como um mantra que a paz e a felicidade em lugar nenhum, não estão em qualquer objeto. É preciso lembrar-se de que há um espírito e que mesmo recollhido num peito abafado, esse espírito brilha. É preciso então cerrar os olhos e convictamente buscar esse brilho dentro de si, arrancar cada erva daninha que obstrua o caminho e abrir espaço, enfiar a mão até o fundo dessa floresta sobria e resgatar essa jóia brilhante, o espírito luminoso. E ao devolvê-lo ao seu lugar, no centro de um peito que se esvazia, ele poderá resplandecer e guiar.