Quantas vidas dentro de cada vida? Uma vez um amigo a recomendara um livro dizendo que sua leitura equivalia a uma vida inteira. Era como morrer, nascer, viver aquela vida inteira, então morrer e nascer de novo. Havia períodos, às vezes longos de anos, às vezes curtos de horas, que causavam esse efeito. Uma nova vida.
Uma vez lhe perguntaram a que ela era fiel. Não soubera responder. Talvez porque justamente naquele momento não estivesse sendo fiel àquilo que cedo ou tarde sempre clamava por atenção e respeito e para que não encontrava denominação melhor que si mesma.
Ser fiel a si mesma. Era possível que alguém fizesse diferente? Provavelmente não. O que diferia entre as pessoas e suas fidelidades era justamente a definição desse si, esse eu com e minúsculo mesmo. Definição essa que ela atravessava mundos e mundos tentando entender onde se dava, por quem, em que momento.
Seria um personagem que ela mesma construíra? Quantos porcento de si era sua mãe, quantos porcento seu país, sua cidade, o bairro em que crescera e o outro bairro onde hoje habitava, a escola onde estudara, as cidades onde vivera por alguns dias ou semanas, os homens que amara por alguns meses ou horas, os laços de amizade que se fortaleciam e enfraqueciam ao longo das vidas, os livros que era incapaz de retirar da estante, os filmes, as manhãs, tardes e noites de cada novo dia. Quantos personagens cabiam dentro desse personagem ao qual devia fidelidade? Haveria um mais forte entre eles, como um personagem principal, ou cada decisão sua era a vitória de um sobre os outros, em cabos de guerra que se sucediam dentro de si, dentro do personagem maior?
Cada nova vida dentro da vida inteira era a história de um desses personagens. Poderia escrever uma biografia onde cada capítulo trataria de um deles. E cada um viveria muitos anos, os mesmos anos, as histórias se intercalando e cruzando e se mergindo como os protozoários luxuriosos que se dividiam no primeiro lago de onde se originaram as primeiras almas.
Mas não era isso que tinha a dizer, nem a si nem ao mundo. O que tinha a dizer é que voltara. Voltara por fidelidade. Por dar-se conta de que naquela nova vida hoje velha faltavam-lhe coisas das quais não queria abrir mão.
Cada nova vida era um montar e desmontar de estantes, uma reordenação dos armários, dos figurinos, dos números de discagem direta e da programação do despertador. Gostava de observar o que permanecia com ela em cada uma dessas configurações. Do que permanecia como parte de si. Talvez essas coisas dessem pistas do personagem principal.
Voltara por amor. Amor ao que construíra e que não via sentido em negar. Porque lhe era familiar, lhe trazia conforto e carinho de si para si. Porque nas alegrias tolas e desajeitadas encontrava formas sublimes de felicidade.
Estar só. Desligar a lógica e deixar o corpo mover-se livremente em todas as direções, às vezes submersa numa manhã azul e molhada, às vezes afogando-se na noite avermelhada, às vezes sufocando-se de fumaça e verborragia cinzentas, às vezes ganhando velocidade numa tarde laranja e lilás. Estar só no meio de todos. Fundir-se em um com os outros e estar só novamente. Duas ou milhares de pessoas, reunidas até fundirem-se numa pessoa só. Fechar os olhos para receber os beijos de Deus fossem através de melodias doces e lâmpadas de óleo, fossem através de graves intensos ressoando em sua caixa torácica, fossem através do silêncio e do infinito no centro de seu peito, fossem através do frio no seu ventre causado pela proximidade de outro corpo ou sua mera lembrança. Em todas essas manifestações via Deus, o mesmo Deus, e precisava estar com ele o tempo inteiro, sob todas as suas formas. Porque esse Deus era sinônimo daquilo que antes chamara de si mesma. Estar em paz com Deus era estar em paz consigo. Fosse no silêncio entre as pedras de pés descalços na terra, fosse na agitação da noite sem fim.
Voltara porque seu Deus não tinha nome nem forma, atendia por muitos e se parecia com todos e a cada dia exigia uma oferenda diferente, em momentos diferentes, entregues aos pés do mundo inteiro. Voltara para servir a esse Deus sem rosto e que se vestia de todas as cores, com um chapéu de guizos e pernas que não se cansavam nunca. Voltara para amá-lo e sorrir quando ele sorria. Voltara porque esse Deus não se permitia ter agenda nem hora marcada, nem endereço, nem sobrenome. Voltara porque esse Deus era a única coisa em que acreditava, a única coisa que a fazia ter certeza de que estava viva. Voltara porque queria viver.