Krishna em O Mahabharata [trad. Jean-Claude Carrière]

"Resiste ao que resiste em ti.
Sê tu mesmo"

sábado, 2 de outubro de 2010

um dia surpreendentemente dificil

hoje foi um dia surpreendentemente dificil. numa semana surpreendentemente especial. num ano surpreendentemente intenso. num período surpreendentemente transformador. numa década surpreendentemente acelerada.

todo o planeta fecha os olhos e respira. cada vez mais pessoas dão as mãos em círculos de poder e se conectam à consciência sutil da rede universal. cada vez mais seres emanam luz e à ela ascendem.

tudo isso eu sinto em mim. dentro de mim. minhas células acordando e dialogando. meu corpo todo se purificando, o amor brotando e fluindo pelos poros. é como se o ar se tornasse menos denso e eu pudesse enxergar o céu mais de perto. bem mais de perto.

anjos voltam a me cuidar e conversar comigo. me lembro depois de tantos e tantos e tantos anos de uma infância cheia desses seres celestiais, companheiros essenciais para que eu adormecesse, iluminaram minhas noites naquela casa tranquila daquela avó serena e azul. e também me surpreende a recordação saudosa desse lugar, dessa infância de antes, dessa infância antiga.

talvez antes do terror, da morte face a face. antes de ver o sangue empoçar, aquelas noites inocentes com a cara e as pernas coladas na parede gelada, brincando com as sombras da lâmpada amarela no alto da escada. a grade da janela, os travesseiros e os bonecos, as orações. o cheiro e o gosto da parede.

quanto medo eu sentia às vezes antes de dormir. mas também quanta fé eu tinha, quantos seres de luz eu invocava para me guardarem o sono. lembro-me bem daqueles amigos radiantes, dourados e prateados, que me povoavam tudo ao redor.


hoje foi um dia especialmente dificil que eu de alguma forma evito deixar que termine. tavez eu tema acordar amanhã com uma ressaca irreparável, talvez eu nunca mais tenha coragem de abrir os olhos para sair da cama.


o que você quer fazer agora? qual o plano?


eu só quero que os anjos voltem a vir dormir comigo.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Não queria acreditar que houvesse um grande motivo para estar ali. Grande parte de si simplesmente não queria. Preferia sentir-se insignificante, preferia acreditar que nada de grande tinha de realizar, que a maior realização na vida seria a renúncia à ação, a mera contemplação.

Volta e meia vislumbrava a possibilidade de algo grande. Algo que poderia proporcionar reconhecimento e que preencheria dignamente seus dias, que em troca da produtividade exigida de suas horas lhe retornaria frutos, louros. Algo que poderia ser celebrado.

Mas logo em seguida já estava a pensar noutra coisa. Volta e meia perguntava-se o porque. Perda de interesse, medo de fracassar, preguiça de começar. Explicações possíveis. Aquela grande parte de si preferia achar que acima (ou abaixo) de tudo isso estava a constatação de que não valia a pena. O que também pode ser interpretado como falta de motivação. Mas aquela parte de si preferiria então chamar de falta de sentido.

Mas havia ainda uma pequena parte de si. Que acreditava e preferia dizer que intuia que haveria sim sentido. Em criar, em mover, em construir.

sábado, 14 de agosto de 2010

curriculum vitae

tudo que fora feito. tudo o que fora estudado. tudo o que fora lido. tudo o que fora empenhado. tudo o que fora exercitado. tudo o que fora obtido.

todos os nomes, lugares, formulas, fatos, sorrisos, notas, compassos, cordas, teclas, traços, linhas, planos, versos, forças

toda a montanha escalada até agora

agora

agora

tarde branca fria lenta silência venta

chão

todos aqueles movimentos em direção a

alguma coisa sempre quisera sair.

alguma coisa fincada fundo, alguma coisa borbulhante, alguma coisa rastejante, alguma coisa sempre sempre em formação. alguma coisa crescendo dentro de si se alimentando de tudo e de todos. alguma coisa pra um dia querer sair

quinta-feira, 29 de julho de 2010

o que eu percebi ontem

talvez seja um pouco clichê. mas ontem eu percebi. experimentei. não foi a mera formulação de um conceito ou cenário.

do sutil ao denso, do denso ao sutil. a vida como um barco. a gente no leme, nos remos, na vela.

a felicidade estampada com cara de céu azul adiante, acima ao nosso redor todo. essa cúpula azul que paira sobre nós, que satisfeitos contemplamos. a felicidade. absolutamente sutil.

de vez em quanto pensamentos se condensam em nuvens que flutuam por esse céu. às vezes são tantas e tão densas que nublam, chegam a formar tempestades. o vento que é brisa ou tornado são os sons da nossa mente. nosso comentarista interno.

abaixo do barco, o mar. um mar. a água bem mais densa que o ar. mais escura também. sustentando o barco, mas também direcionando-o. às vezes se agitando e jogando-o acima, aos lados, obrigando-nos a desviar o olhar da bela cúpula e cuidar para que o barco não vire. esse mar é nosso peito. é cheio de tristezas nadando em cardumes agitados, cavucando e espetando os solos coloridos, dançando por dentre os corais... ou arrastando-se lentas e secretas, monstruosas, nas fossas abissais.

pois bem, está aí a imagem que eu contemplei. o barqueiro, um vasudeva dos mares, tranquilo namora a felicidade azul. chega a divertir-se com um e outro pensamento quelhe cruza a vista. o vento sopra tranquilo e agradável, o mar balança confortável sob suas costas que descansam no barco. se acumulam algumas nuvens, o vento acelera, a luminosidade diminui, o mar se agita. o barqueiro se levanta e encara o mar. o vento uiva. e ele sabe, sente, vive o monstro que como as asas da borboleta, gere a tormenta. e ele sabe que quando for capaz de mergulhar muito fundo e agarrar o monstro ou atraí-lo à superfície, ou lançar algo que o arranque, não importa como... quanto ele for capaz de retirar aquele monstro do fundo... o monstro popará como uma rosca e o mar se esvaziará por um ralo gigante. e só restará a cúpula, para sempre azul. para sempre sutil.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

tenho 24 anos e acho que devia escrever minha biografia

segunda-feira, 19 de julho de 2010

presente

É bom tirar as meias e pisar o piso
Despir todas as camadas e deixar o ar roçar a pele

Ligar a água e sentir a temperatura na ponta dos dedos
Deixar a água descer o corpo

Molhar cabelo, rosto

Perceber a diferença de temperatura entre a água e o ar
E sentir prazer

***

Vestir apenas uma camiseta e um short
Leve

***

Sentar-se na cadeira de tantas vezes
Diante da janela de tantas vezes

Os dedos sobre os teclados de tantas vezes

***

A mente como a grama que ficou
Após levantarmos o acampamento

A mente cheia de brotos frescos
Cheia de sementes

***

olhar-se no espelho e se localizar no espaço
no tempo

no mapa dentro de si

não temer o calendário, pelo contrário
vislumbrar nele os louros

terça-feira, 6 de julho de 2010

Os limites

‘A sociedade contemporânea é um programa, cujas possibilidades são tão amplas que os indivíduos não percebem que só podem programar – escolher, apertar – o que está pré-programado.’ (Flusser)

Me interessa perceber os limites desse programa. E descobrir que há formas de viver na fronteira. Me pergunto se alguém vive do lado de lá – seja porque ser trancado do lado de fora (exclusão social), seja por pular ou derrubar o muro (neo-hippie, contato, ecovilas).

‘a sociedade moderna se define como sociedade ampla, de grande mobilidade social, com indivíduos como personagens centrais (...) inexistência de exterioridade’ (Nascimento)

Inexistência de exterioridade?

Me interessam essas pessoas que vivem como em mundos paralelos, que transitam pelas mesmas ruas que nós, tomam os mesmos coletivos que nós, falam as mesmas línguas que nós, até usam as mesmas roupas que nós. Mas que vivem, senão do outro lado, nas fronteiras, nos limites.

No fim das contas o que interessa é a liberdade. O conceito de liberdade é cultural. Mas o que eu digo que estou chamando de liberdade, se é que tem algo atrás dessa palavra, se é que existe um referido... Qual o espaço dessa liberdade pré-objetificada? Existe uma ‘necessidade universal’ (Rosemberg) de liberdade que cada sociedade permite aos membros expressar ou satisfazer mais ou menos?

terça-feira, 22 de junho de 2010

meu coração, deslumbrado, corre de lado a outro.
às vezes vai rápido demais, tomba e se parte.
às vezes se infla tanto que flutua.

meu coração pulsa.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

de todo o resto me dispo

Algo em mim está em festa. Comemora sem saber bem o quê. Celebra a vida, talvez. A vida maravilhosa que se revela enquanto me descubro.

Há muito me viciei em explorar a vida, hoje decido assumir. Assumir que tenho um corpo, que sou sim esse corpo e também o ser que o habita. Assumir que posso dar e receber prazer, desse e a esse corpo e dele aos demais. Assumir que não abro mão do prazer. Dar e receber.

Ouço com atenção o que sinaliza meu corpo e todos os outros, ouço o que articulam entre eles.

Descubrassumo que posso explorar tudo o que existe. O universo é imenso mas é meu. Não há nada que não me pertença. De tudo posso provar e me apropriar e transgredir. E tudo posso doar, expressar, representar, trocar, vir a ser.

Vir a ser. Vir a ser.
Vir a ser. Vir a ser.

Me transformo. A cada dia, cada passo, cada traço, cada dança, cada verso. Muda meu corpo, meu olhar, minha pele, meu ritmo. Mudam minhas respostas. Nada se cala, tudo em mim fala, grita, respira, dança. Tudo em mim se expressa. O mundo em mim se expressa. Toda a poesia do mundo me inunda os olhos, a alma. Arregalo os olhos e deixo o mundo entrar.

Transbordo.

Respiro. Borbulho. Mergulho.

Algo em mim se move em direção a algo. Se arrasta, se atira, desliza, recua. Algo em mim formula sonhos. Me movo em direção a todos os eus que posso vir a ser. Me abraço, me acolho, me revelo, me exploro, me arregaço diante do mundo, me danço.

Algo em mim tem fome e sede. Algo em mim tem abundância. Plenitude. Transbordância.

Açude. Córrego.

Imensidão do mar. Vida em movimento, felicidade em movimento. Casa. Nem os sapatos reconheço como lar.

Só o coração.

Meu presente de aniversário

Que ele seja romântico sem ser carente,
Que ele seja saudável sem ser careta,
Que ele seja culto sem ser pedante,
Que ele seja engajado sem ser militante,
Que ele seja despojado sem ser esculhambado,
Que ele seja bem-humorado sem ser bobalhão,
Que ele seja animado sem ser festeiro,
Que ele seja aventureiro sem ser irresponsável,
Que ele seja idealista sem ser ingênuo,
Que ele seja realista sem ser amargo,
Que ele seja apaixonado sem ser apegado

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Vou me encontrando enquanto eu te procuro.

sábado, 22 de maio de 2010

vez e outra se sentava pra escrever sobre o quanto desejava escrever um livro

vez e outra decidia que este vai ser o último cigarro e logo depois acendia outro.

vez e outra virava a noite inspirada por um projeto sobre o qual nunca voltava a falar.

vez e outra desligava o despertador e dormia mais uma, duas, três horas.

vez e outra se sentia pateticamente narcisista.

vez e outra não gostava muito de si, apesar de gostar muito da própria vida.

vez e outra se achava uma fraude.

vez e outra se sentia cansada de todo mundo e ainda assim incontrolavelmente carente.

vez e outra achava que talvez fosse melhor voltar a fazer terapia.

vez e outra comia uma barra inteira de chocolate.

vez e outra se sentia culpada por se sentir culpada.

vez e outra achava o mundo inteiro ridículo, absurdo e sem sentido.

vez e outra se perguntava se as plantas estavam tristes porque ela estava triste.

vez e outra seu corpo gritava o que ela mesma fingia não ver.

vez e outra assoava um rolo de papel inteiro em um dia.

vez e outra chorava de vergonha e desespero que na verdade eram simplesmente medo e ansiedade.


***

vez e outra achava tudo tão lindo que achava que ia explodir de tanta poesia imanifesta.

vez e outra flutuava de gratidão pelas pessoas, pelas histórias, pelas danças, pelos dias.

vez e outra trabalhava em alguma coisa obcessivamente e ficava tão satisfeita com o resultado que o sorriso era mais forte que a boca.

vez e outra só tinha certezas e o resto não era a hora de pensar.

vez e outra se olhava no espelho e era a menina mais bonita do mundo.

vez e outra era grata pelo simples (simples?) fato de sentir gratidão.

vez e outra tudo entrava nas proporções exatas pra se encaixar e formar um quadro perfeito.

vez e outra concordava plenamente com o que ouvia ou lia.

vez e outra fechava os olhos e se sentava aos pés de Deus.

vez e outra recebia uma cartinha ou um cartão ou um abraço ou um olhar transbordantes de amor.

vez e outra conseguia fazer o trabalho andar, mesmo com a sensação de não estar trabalhando.

vez e outra o mundo parecia um playground de tantas pessoas e lugares e coisas legais pra se conhecer.

vez e outra compartilhava com alguém o privilégio de um diálogo criativo musical, corporal, visual, poético, tudo-isso-junto-ou-qualquer-outro e guardava na lista de momentos que realmente valeram a pena.

vez e outra uma obra tocava algo tão profundo que seu coração se contorcia de prazer.

vez e outra era surpreendida por algo perfeito que ficava melhor.

***

vez e outra escrevia porque não saberia como não escrever

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Um sonho que volta

Noite passada, o mesmo sonho de sempre. Não de sempre e nem exatamente o mesmo, mas um tema que se repete. O mesmo menino já há um ano, talvez mais. Estamos juntos, próximos, fazendo não sei bem o que. Conversando, acho. Nossos rostos se aproximam. Eu me surpreendo com a desconfiança de que algo no olhar dele mudou, de que algo a mais ele está querendo, quase pedindo. Então ele vem. Se aproxima mais e seus lábios tocam os meus. Dessa vez o sonho teve até trilha sonora, Finalmente cantada por Pedro Luiz e Ney Matogrosso, a canção que eu certamente elegeria como "nossa" se houvesse a oportunidade. Nos beijamos. É surpreendente, intenso, reconfortante, é o pote de ouro no fim do arco íris. Ele é lindo, lindo. Lindo. Então nos separamos, as bocas e os corpos. Perco ele de vista. Passo o resto do sonho me perguntando se o terei de novo e acordo com a mesma sensação. Para lembrar que nunca o tive.
Essa pessoa eu quase sei que só terei em sonho. Quase sei porque afinal, o que sabemos nós?
Mas espero, às vezes com mais, às vezes menos paciência, pelo dia do beijo da pessoa real que me fará sentir da mesma forma. Pelo dia de cantar Finalmente pra tudo aquilo que eu venho sonhando. Já se passou tanto tempo...

sexta-feira, 7 de maio de 2010

surpresa e gratidão

Esse é o primeiro dos muitos posts que certamente virão, influenciados/motivados pelas experiências e reflexões que o curso sobre Comunicação Não-Violenta estão me proporcionando. Em algum momento e provável que eu me sinta inspirada a escrever de forma mais explicativa sobre os conceitos e "métodos" da CNV. Neste momento, compartilhar um relato me satisfaz mais.

cheguei do encerramento do módulo 1 do curso de CNV motivada a iniciar um caderninho de auto-empatia, onde escreveria observações de verdades, apontando depois como me sinto em relação a elas, que necessidades esses fatos atendem ou deixam de atender... e ir entrando num diálogo empático interno, meio para ver onde chegaria.

comecei com algo que sempre me vem, o fato de que às vezes eu como mais do que acho saudável, ou sinto muita vontade de fumar (ou mesmo fumo...). essas "puladas de cerca" me fazem sentir frustrada, decepcionada e culpada porque não atendem a minhas necessidades de saúde, bem-estar, beleza, segurança, pertencimento e, principalmente, respeito (a decisões que eu mesma tomei). mas a CNV me ensinou a ver que comer um doce ou fumar um cigarro atendem a minhas necessidades de celebração, diversão, prazer, reconhecimento e autonomia.

a partir disso, testei me fazer perguntas/pedidos e observar minha reação caso eu respondesse sim ou não. minha primeira pergunta foi: você pode olhar para isso de forma mais tolerante? a resposta foi sim. só que o interessante é que eu percebi que se a resposta fosse não eu não ficaria muito abalada. o que confirma que a resposta é sim.

aí minha pergunta seguinte foi você pode encontrar outras formas de celebrar? a resposta foi sim novamente. no entanto, eu disse pra mim mesma que continuaria sentindo vontade de comer um chocolate ou fumar um cigarro de vez em quando e que preferiria deixar acontecer e ver como eu lidaria com as consequencias depois, para ver se um dia essas consequencias me fariam perder a vontade. e se nao fizessem, talvez fosse porque as necessidades atendidas fossem mais significantes naqueles momentos que as não atendidas.

e, enquanto pensava tudo isso, fui sentindo fome e vontade de fumar. aí vem a parte interessante: me fiz a pergunta você pode controlar agora a vontade de fumar e/ou comer algo? e antes de responder, eu pensei que se a resposta fosse não, ou seja, se eu cedesse à vontade, eu me sentiria novamente frustrada, decepcionada e desrespeitada. mas ao mesmo tempo, me sentiria acolhida e compreendida, como uma criança que tem seus desejos atendidos. e só de pensar nisso, para minha imensa surpresa, a vontade passou!!!

é surreal o quanto estou feliz com esse resultado totalmente inesperado!

sinto muita gratidão não apenas pelo Dominic que conduziu o curso, ou pelo Diogo que organizou, ou pelo Marshall que iniciou a pesquisa de CNV... mas por todas as pessoas que estiveram presentes e compartilharam tantas coisas, por mim mesma por ter tido a iniciativa de fazer o curso, por acreditar que esse processo poderia dar certo, por ter sido de fato empática nesse diálogo tão breve mas tão esclarecedor, por todos os fatores da minha vida que me trouxeram até aqui....

hoje senti muita plenitude, me senti muito cheia de coisas muito lindas. e esse fechamento foi totalmente perfeito, não apenas pela beleza e profundidade que isso tem para mim, mas principalmente pela surpresa.

surpresa, amor e gratidão.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Valdemar (da Cruz Santos)

Escrevo para tentar entender. Saí da faculdade e caminhei até a Joaquim Silva, no limbo Lapa/Glória/Praça Paris para buscar um calçado no sapateiro. Depois caminhei até o ponto na beira mar onde pegaria meu ônibus.

Um homem aborda as pessoas do ponto. Uma roupa social surrada e suja. Um olhar... sincero?

A abordagem não foi verbal. Ele distribui folhas xerocadas -- e é aí que cativa minha atenção. Minha primeira reação é de interesse gráfico. A colagem com uma foto no fundo, um recorte de documento e alguns garranchos é tão intrigante quanto indecifrável ao primeiro olhar. Não adianta tentar descrever, vale a investigação por si:

Pergunto a ele o que era aquilo. Ele diz que estava mostrando para as pessoas para que lhe dessem esmolas. Enquanto eu pesco algumas moedas na carteira ele embola frases sobre uma mulher da vida que levara todo o seu dinheiro e que desde então está na rua.

Há algumas semanas, estimulada por uma proposta de projeto de design com o tema Cidadania, venho martelando a minha cabeça com questões a respeito dos moradores de rua. Como entender as histórias dessas pessoas, que as levaram a essa situação? Como entender essa situação? O que fazer a respeito, que não aceitar e passar direto? Quanto esse homem se aproximou de forma tão curiosa, não pude evitar dedicar-lhe alguma atenção.

Deixo que passem alguns ônibus na tentativa de conversar com ele. Mas a explicação não se esclarece, ele fala um pouco dessa mulher, repete seu endereço que eu não gravo, afirma que lhe tomara todo o dinheiro. Analisando agora a folha xerocada que lhe pedi para deixar comigo, desconfio que os garranchos no alto sejam o nome e endereço dessa pessoa.

Um pouco atordoada, com vontade de conversar mais, mas temerosa não sei bem do quê, faço sinal para um ônibus que me serve. Ele entra no ônibus comigo. Distribui as folhas recolhidas no ponto aos passageiros do ônibus e faz seu discurso de pedinte. Fala da mulher que o deixara sem nada, que não tinha família nem ninguém, que os pais estão mortos, que há um mês está dormindo na rua. Presto atenção no que ele diz, olho nos seus olhos, e quando se aproxima de mim, tento conversar mais um pouco. Pergunto onde ele está dormindo, ele diz que pela rua mesmo, que ia subir pra Rocinha... Eu digo que gostaria de saber mais sobre a história dele e talvez ajudá-lo.

Ele então tira um celular do bolso e coloca na minha mão "olha, tá aqui o meu telefone". Futuco a interface até encontrar o número dele. Ele me diz seu nome, Valdemar. Salvo na minha agenda. Devolvo o aparelho e ele aperta minha mão, olha nos meus olhos e diz "você vai me ajudar, né? eu sei que você vai me ajudar." Valdemar segura a minha mão e pergunta se eu vou pedir a Deus por ele. Eu digo, com total sinceridade, que vou. Ele senta no banco ao meu lado e fala mais algumas coisas, abre uma pastinha de documentos e tira para mostrar, primeiro seu cartão do Banco do Brasil, igualzinho ao meu, depois seu passaporte. Eu digo que vou descer e ele recolhe suas folhinhas xerocadas dos passageiros para vir junto.

Ele senta no ponto de ônibus e abre espaço pra que eu me sente também. Parte de mim olha a situação de fora e quer sair correndo. A proximidade com aquele desconhecido acionava alarmes instalados há muito tempo, imagens absurdas me ameaçavam. Ainda assim eu sinto que era pra ficar e por isso me sento. Valdemar abre sua pastinha e começa a tirar documentos. O cartão do banco de novo, diz que vai receber amanhã 510 reais. Depois o passaporte, dizendo que estava morando no Chile. Encontro um carimbo de saída da Argentina.

Enquanto coloca um monte de papeizinhos na minha mão, cartões de crédito, extratos bancários, anotações indecifráveis, Valdemar me pede ajuda. Diz que receberá esses 510 reais amanhã e todos os meses. Que pode me dar esse dinheiro para que eu encontre um lugar para ele morar, um quarto, compre comida para ele e o ajude. Surge então um gesto. A cada vez que diz ajudar, Valdemar aponta as têmporas e gira o dedo. Parecido com o que fazemos quando dizemos que alguém não regula bem.

Começo a me perguntar se Valdemar tem alguma deficiência cognitiva. Se a ajuda que ele precisa é alguém que cuide dele. Eu pergunto porque ele não se vira sozinho com esse dinheiro, porque não aluga um quarto. Ele repete que não dá, que não tem ninguém, que os pais morreram, que a mulher levou tudo, que ele veio do Chile... Damos algumas voltas com isso, eu digo que ele não pode confiar na primeira pessoa que aparece e entregar assim o cartão do banco e dizer todas essas coisas. Eu digo que vou ajudá-lo mas levanto querendo ir embora, algo na proximidade me incomoda. Começo a entender que a ajuda de que esse homem precisa é de outro tipo, não é financeira, é emocional. Ele precisa de cuidado. E eu não sei se posso dar isso. Ele diz que confia em mim e pergunta meu grau.

Eu digo que estou terminando a faculdade. Ele diz que confia em mim, repetidas vezes. Eu digo que os maiores ladrões do país têm doutorado e estão lá em Brasília roubando todo mundo. Ele segura minha mão e chega muito perto, diz que as pessoas podem achar que ele é louco mas que ele é deficiente. Eu pergunto o que ele tem e ele mostra o braço, ligeiramente deformado, com uma cicatriz, mas não consigo entender de quê. Em algum momento eu digo que vou embora e ele me dá um beijo na bochecha. Sinto nojo mas deixo que ele faça. E não consigo ir embora.

Valdemar continua sentado e continua falando. Que eu posso ajudá-lo, conseguir um lugar para ele ficar, para ele estudar, trabalhar. Me mostra uma folhinha esfarrapada com uma lista de empregos de 86 a 88. Hoje ele é aposentado, apesar de não ser idoso. Teria sido um acidente de trabalho que o incapacitou e por isso ele se aposentou? Mas ele não parece fisicamente debilitado, qual é exatamente a incapacidade desse homem? Valdemar diz que eu posso ajudá-lo, diz que sabe falar espanhol, que quer mexer em computadores.

Eu sigo repetindo que quero ajudá-lo, que vou pensar em um lugar para ele ficar, ele segue perguntando se eu vou ligar para ele, até amanhã. Fica lembrando dos 510 reais, que ele pode me entregar, que ele confia em mim. Aflita com a proximidade que ele insiste em estabelecer, eu decido ir embora mesmo. Ele segura minha mão e me beija outra vez. As duas bochechas. Eu sinto muita repulsa, mas deixo.

Deixo Valdemar falando enquanto me afasto. Tenho medo de que me siga, estou perto de casa, mas não olho para trás. Depois de virar à esquina, olho e vejo que ele não veio. Me pergunto o que eu posso fazer por esse homem, como posso ajudá-lo. Primeiro, e eu sei o quanto egoísta isso é mas não consigo evitar, porque estou curiosa. Quero entender quem é esse homem, pelo quê ele passou, como foi parar nessa situação. O quanto é verdade e o quanto é mentira.

Agora, em casa, tento decifrar a folha que trouxe comigo. No alto, um cabeçalho da polícia civil de SP. O número do boletim e sua data de emissão, 18/04/10. Há dez dias atrás, Valdemar estava em São Paulo? Embaixo essa foto dele sem camisa, mostrando o braço com a cicatriz que na foto nem se vê. Sorriso e olhar que me levam de volta à nossa conversa no ponto de ônibus. Pedem ajuda e dão vontade de ajudar de verdade. No texto colado por cima da foto, de uma folha rasgada de uma delegacia em São Paulo, emitido em 15/01/10, alguns dados sobre Valdemar.

Nomes dos pais, naturalidade de Fortaleza, CE, nascimento em 10/04/65. Valdemar completou 45 anos há 18 dias. Aposentado, 1º grau incompleto, endereço residencial em Campos Elíseos, São Paulo, SP. Embaixo algumas informações que eu não entendo se se referem a ele ou outras pessoas. Autores 1 e 2, ambos desconhecidos e não presentes ao plantão (ao qual Valdemar esteve), o autor 1 do sexo feminino e o 2 do sexo masculino. Autores de quê? Que plantão? Preciso consultar alguém que decifre para mim esse documento. Em cada autor uma observação. Autor 1: com cicatriz no braço. Autor 2: armado.

Valdemar estava armado? Não consigo imaginar aquele homem, com aquele olhar, carregando uma arma. Me volta à cabeça a imagem dele segurando minha mão, chegando perto pra falar quase no meu ouvido, me dando um beijo na bochecha. Algo em mim sente nojo, algo maior sente medo. Imagino ele não me deixando ir, não me deixando sair do ônibus, me seguindo, me levando com ele para algum lugar, puxando uma arma ali mesmo no ponto, passa tudo patricinha burra, tá achando que pode ficar de papo com qualquer maluco que te pára na rua?

Lembro de uma situção parecida, dentre outras, vivida em Salvador, no Pelourinho. Estava com dois colegas de viagem, que conhecera na Bahia mesmo, ambos antropólogos. Um deles tinha o hábito de conversar com os moradores de rua. Uma noite ficamos um bom tempo conversando com uma senhora que vivia ali desde menina, sentamos com ela no chão da praça, ela chorou no colo de um deles, desenhou no meu caderno de viagens -- contando experiências de quando esteve presa, se eu me lembro bem --, escreveu coisas bonitas e confusas, nos abraçou como uma criança. Depois quis nos empurrar para o táxi de um suposto amigo, o que um passante -- talvez um guarda municipal, não lembro -- advertiu ser uma roubada. Foi estranho de repente ver aquela mulher que parecera tão fragilizada como uma ameaça. Na realidade ela era os dois, a violência parece sempre caminhar ao lado da fragilidade.

A culpa burguesa me faz chegar e escrever tudo isso. Pra não sumir da memória. Eu tenho mil coisas pra fazer hoje, amanhã, ao longo da minha vida. Mas eu quero ajudar o Valdemar. Eu olhei nos olhos dele e disse que o ajudaria. E eu comecei a acreditar quando ele fez aquele gesto apontando as têmporas e eu entendi ou desconfiei do tipo de ajuda de que ele precisa.

Talvez encontrar um quarto que ele possa alugar, talvez ligar para um assistente social... nem sei como funcionam essas coisas. Não sei quanto de verdade há na história dos 510 reais. Não sei pra quantas pessoas ele já contou essas e outras histórias, já pediu ajuda. De alguma forma me sinto comprometida com esse homem. Sinto que ele não me abordou por acaso, que eu não dei ouvidos a ele por acaso, que algo eu posso fazer e que não seja apenas para amenizar a minha culpa de pobre menina rica. Eu tenho o telefone do Valdemar, eu posso encontrá-lo se resolver fazer alguma coisa que possa ajudá-lo. Mas não entendo.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Fazer o que der vontade, sem ataques de futuro

Não namorar significa fazer o que der vontade sem (se) machucar.

Achei que isso era viver.
Não foi só uma resposta esperta. Mas a frase me pegou de surpresa. Uma vida inteira resumida assim. Fazer o que der vontade sem (se) machucar. Acho que em todos os mundos do meu universo isso é a única coisa que sempre fez sentido. E é exatamente isso que eu faço, sempre, em qualquer vida.

Mas tem esse não namorar no início da frase porque era disso que se tratava o diálogo. Foi engraçado porque eu estava justamente formulando o que é namorar, senão assinar um contrato, sem necessariamente discutir seus termos, mas esperando que sirvam de proteção contra tudo aquilo de que temos medo: que o outro deixe de amar, que ame mais um terceiro, que nos deixe sós no sábado à noite, que não tenhamos quem se interesse por toda a complexidade do que somos e sentimos.

Sejamos sinceros, namorar não protege ninguém contra nada disso. Pra começar que esses são medos que, se sentidos, devem ser vencidos e não simplesmente abafados. Pelo menos na minha experiência o termo compromisso só serviu pra eu me sentir segura de que o outro estaria com suas portas trancadas, que não deixaria ninguém entrar nem se deixaria sair. Mas eu mesma nunca tranquei minhas portas. Eu sempre transitei livre, eu sempre fiquei só enquanto era bom, eu sempre deixei entrar quem se anunciasse.

Liberdade nesse caso é sinônimo de sinceridade. E se tem uma coisa que eu não aprendi é a não ser sincera. Outro dia uma amiga me perguntou o que fazer numa situação emocional complicada. Depois de um breve discurso sobre a invalidade de qualquer conselho, dado que não sou eu lá vivendo a situação, eu disse a ela que fosse sincera, com ela mesma em primeiro lugar. Porque numa situação em que você não tem ideia das consequências externas do que fizer, ou seja, sempre, só resta garantir que a consequência interna seja pacífica.

A melhor forma que eu encontrei pra dormir tranquila todas as noites é fazendo exatamente o que me dá na telha, deixando as palavras saírem quando se anunciam na boca, deixando as mãos serem tão carinhosas quanto desejarem e os pés caminharem na direção que lhes aprouver. Quando eu sinto muita vontade de dizer algo a alguém... eu posso estar muito longe de adivinhar o que a pessoa vai ouvir, o que vai dizer de volta. Mas eu posso ter certeza, convivendo comigo há quase 24 anos, que eu vou me sentir bem depois de dizer. E que se eu não disser aquilo vai inchar na garganta e que aos poucos vai criando uma papada quente e incômoda que vai me deixando pesada e restringindo meus movimentos.

Bom mesmo é quando duas pessoas estão juntas porque estão com vontade. Dure isso uma hora, um fim de semana ou uma vida inteira. É sempre uma vida inteira, dentro das muitas que vivemos em cada um dos muitos mundos que orbitam no universo de cada um de nós. Desde que seja sincero, será intenso e será bonito. Bonito é quando é inteiro. Quando o olhar não cobra nem pede, só oferece.

Me pergunto quando a gente vai confiar o suficiente na vida e no Deus dentro do peito pra transitar seguro e à vontade por qualquer situação, agindo só em resposta ao que acontecer, sem ataques de futuro como diz meu professor de Contato. Sem ataques de futuro. A vida é cheia desses casinhos deliciosos que a gente não quer deixar acabar antes de explorar toda a beleza que puder encontrar. A vida inteira é assim, o mundo inteiro. As divisões que criamos no tempo são invenções da mente. Cada dia é único e a vida toda é inteira. Nada começa nem termina, tudo é fluxo. E o meu manual de instruções pra navegar tranquila é fazer tudo o que der vontade, sem (se) machucar. E responder às situações em vez de tentar adivinhá-las. Sem ataques de futuro.

sábado, 24 de abril de 2010

Da volta

Depois de dois meses que na verdade foram três, que na verdade foram uma vida inteira, voltara para casa. Isso há três semanas que eram quase um ano inteiro. Ainda não sabia muito bem o que dizer, nem sobre a vida de antes da de antes, nem sobre a que recém desfizera, nem sobre essa nova que ainda esboçava. Mas as palavras já voltavam a dançar sozinhas em sua cabeça e, ganhando velocidade, tomavam todo seu corpo de espasmos que empurravam seus dedos em direção ao teclado. Era preciso dizer algo, mesmo sem saber o quê.

Quantas vidas dentro de cada vida? Uma vez um amigo a recomendara um livro dizendo que sua leitura equivalia a uma vida inteira. Era como morrer, nascer, viver aquela vida inteira, então morrer e nascer de novo. Havia períodos, às vezes longos de anos, às vezes curtos de horas, que causavam esse efeito. Uma nova vida.

Uma vez lhe perguntaram a que ela era fiel. Não soubera responder. Talvez porque justamente naquele momento não estivesse sendo fiel àquilo que cedo ou tarde sempre clamava por atenção e respeito e para que não encontrava denominação melhor que si mesma.

Ser fiel a si mesma. Era possível que alguém fizesse diferente? Provavelmente não. O que diferia entre as pessoas e suas fidelidades era justamente a definição desse si, esse eu com e minúsculo mesmo. Definição essa que ela atravessava mundos e mundos tentando entender onde se dava, por quem, em que momento.

Seria um personagem que ela mesma construíra? Quantos porcento de si era sua mãe, quantos porcento seu país, sua cidade, o bairro em que crescera e o outro bairro onde hoje habitava, a escola onde estudara, as cidades onde vivera por alguns dias ou semanas, os homens que amara por alguns meses ou horas, os laços de amizade que se fortaleciam e enfraqueciam ao longo das vidas, os livros que era incapaz de retirar da estante, os filmes, as manhãs, tardes e noites de cada novo dia. Quantos personagens cabiam dentro desse personagem ao qual devia fidelidade? Haveria um mais forte entre eles, como um personagem principal, ou cada decisão sua era a vitória de um sobre os outros, em cabos de guerra que se sucediam dentro de si, dentro do personagem maior?

Cada nova vida dentro da vida inteira era a história de um desses personagens. Poderia escrever uma biografia onde cada capítulo trataria de um deles. E cada um viveria muitos anos, os mesmos anos, as histórias se intercalando e cruzando e se mergindo como os protozoários luxuriosos que se dividiam no primeiro lago de onde se originaram as primeiras almas.

Mas não era isso que tinha a dizer, nem a si nem ao mundo. O que tinha a dizer é que voltara. Voltara por fidelidade. Por dar-se conta de que naquela nova vida hoje velha faltavam-lhe coisas das quais não queria abrir mão.

Cada nova vida era um montar e desmontar de estantes, uma reordenação dos armários, dos figurinos, dos números de discagem direta e da programação do despertador. Gostava de observar o que permanecia com ela em cada uma dessas configurações. Do que permanecia como parte de si. Talvez essas coisas dessem pistas do personagem principal.

Voltara por amor. Amor ao que construíra e que não via sentido em negar. Porque lhe era familiar, lhe trazia conforto e carinho de si para si. Porque nas alegrias tolas e desajeitadas encontrava formas sublimes de felicidade.

Estar só. Desligar a lógica e deixar o corpo mover-se livremente em todas as direções, às vezes submersa numa manhã azul e molhada, às vezes afogando-se na noite avermelhada, às vezes sufocando-se de fumaça e verborragia cinzentas, às vezes ganhando velocidade numa tarde laranja e lilás. Estar só no meio de todos. Fundir-se em um com os outros e estar só novamente. Duas ou milhares de pessoas, reunidas até fundirem-se numa pessoa só. Fechar os olhos para receber os beijos de Deus fossem através de melodias doces e lâmpadas de óleo, fossem através de graves intensos ressoando em sua caixa torácica, fossem através do silêncio e do infinito no centro de seu peito, fossem através do frio no seu ventre causado pela proximidade de outro corpo ou sua mera lembrança. Em todas essas manifestações via Deus, o mesmo Deus, e precisava estar com ele o tempo inteiro, sob todas as suas formas. Porque esse Deus era sinônimo daquilo que antes chamara de si mesma. Estar em paz com Deus era estar em paz consigo. Fosse no silêncio entre as pedras de pés descalços na terra, fosse na agitação da noite sem fim.

Voltara porque seu Deus não tinha nome nem forma, atendia por muitos e se parecia com todos e a cada dia exigia uma oferenda diferente, em momentos diferentes, entregues aos pés do mundo inteiro. Voltara para servir a esse Deus sem rosto e que se vestia de todas as cores, com um chapéu de guizos e pernas que não se cansavam nunca. Voltara para amá-lo e sorrir quando ele sorria. Voltara porque esse Deus não se permitia ter agenda nem hora marcada, nem endereço, nem sobrenome. Voltara porque esse Deus era a única coisa em que acreditava, a única coisa que a fazia ter certeza de que estava viva. Voltara porque queria viver.