Krishna em O Mahabharata [trad. Jean-Claude Carrière]

"Resiste ao que resiste em ti.
Sê tu mesmo"

domingo, 21 de setembro de 2008

no alarms and no surprises, please

às vezes eu perco um tempo me perguntando sobre quantos romeus eu ainda vou ter que conhecer até que algum veja em mim a sua julieta.

é sempre a mesma coisa. eu saio de casa sem nenhum horizonte, mas toda arrumada caso o principe encantado surja na esquina. e de fato surge. é sempre um amigo de um amigo de alguém. recém-chegado de algum lugar, recém-separado, recém-disponível. conversamos por horas, temos assunto pra não precisar de ninguém, fluidez perfeita, sorrisos sugestivos e intimidade prematura. eu fico ali que nem a pequena sereia, à espera do beijo, esticando os dedos pra esbarrar nele, pra ver se ele finalmente... a respiração suspensa por horas, total atenção a cada milímetro de cada movimento, a expectativa melhor possível. nada. nalgum momento somos interrompidos por alguém, pela música, pela cerveja que acaba, pela vontade de ir ao banheiro. sorriso ansioso a todos em volta, sinalizando o está quase. e fica no quase até virar quem sabe, depois não sei, depois é, esquece. fossinha, de novo. radiohead. everything in it's right place.
é isso que é precisava, colocar tudo no lugar certo, chamar cada coisa pelo seu nome. cansei dessa confusão na minha vida, esse zumbido o tempo todo, esse sozinha, solteira, inútil, incapaz, inconpetente, insegura. cansei também do inteligente, especial, diferente, original, gentil. cansei de me destacar num monte de coisa mas nunca estar satisfeita, nunca me destacar no que eu realmente queria, ou diante de quem eu realmente queria.

ser simpática sempre, inteligente, bem vestida, ir às festas, demonstrar interesse, não se atirar, ir com calma, aproveitar as oportunidades, fazer observações bem-colocadas, rir na medida certa, não se expor, não forçar, não criar expectativas, ficar tranquila, confiar, esperar, harder, better, faster, stronger, esperar a sua vez, nunca chegar a sua vez. 

quantos fracassos até que alguma coisa realmente valha à pena, quantos saxofones uivando dramáticos o enterro das suas expectativas, o clamor das suas frustrações? um baixo furioso, dor, dor, confusão. dá raiva às vezes. ir ao louvre. sozinha? voltar sozinho pra um quarto vazio todas as noites por meses a fio, os amigos rompendo e voltando, conhecendo, reencontrando, distribuindo, colecionando.
e as suas preocupações são a conta atrasada, o trabalho idiota, a parte burocrática e longa, sempre muito ocupada. sempre muito ocupada pra esconder a solidão, isso sim. sempre às voltas com quinhentas coisas pra esconder o quanto se sente pequena e incapaz, o quanto tem medo, medo do que vem, medo de ficar tão sozinha que deixe de ser engraçado, tão gorda que passe a ser triste, tão sozinha que nem se lembre como é, que se torne amarga, cada vez mais reclusa, que desista, que deixe de acreditar. que um dia já não queira mais se arrumar, e aí já não queira mais ir, e depois já não veja graça em nada nem em ninguém e então seja desagradável com todos porque tem raiva, porque precisa forçar os outros a lhe respeitarem ou admirarem já que são incapazes de amá-la.

eu me agarro a pequenas coisas. linhas de raciocínio extremamente otimistas, frágeis como um passarinho pelado, mas de algum modo gritando alto, famintas. finais felizes mesmo para os mais improváveis, realizações quase impossíveis, contos de fadas contemporâneos. me recuso a ver que o mundo vai pelo ralo nas individualidades consumeristas, não aceito a hipótese de que são realmente raríssimos que encontram. me convenço de que há alguém especial para todos em cada momento de suas vidas e de que esse meu alguém está tão perdido e ansioso quanto eu e que ele vai me valorizar como nenhum outro e que nunca vai me deixar ir, que nunca vai me perder.
eu mesma me perco. quando ganho, quando finalmente chego ao topo, me cansa a paisagem. mas não dessa vez, repito, não dessa vez que não chega. essa vez que não chega há quanto tempo, aliás? quantas vezes ela realmente chegou? poucas, pouquíssimas, e é cada vez mais difícil, cada vez mais sufocante. A queda é cada vez maior, eu me pergunto quantas vezes mais, quantas vezes mais é possível, pela loteria dos eventos e pela resistência da minha boa-vontade.

quando eu contei pra minha analista do sonho dos dentes, emendei contando o pesadelo que eu sempre tinha na infância, quando eu dormia no quarto da minha mãe no primeiro andar, a janela assustadoramente aberta, que eu não conseguia descrever verbalmente, exceto pela palavra bigornas, e o resto era só som, bigornas imensas caindo e quase me amassando, o grave muito potente daquelas bigornas caindo. e que noutro dia me veio inteiro num desenho, agora é até difícil descrever sem visualizar, uma caverna magnífica, pedra bruta, estactites e estalagmites, muito escura, a terra avermelhada, quente, e as bigornas como prédios, do tamanho do mam, caindo perto de mim. e no escuro, eu não podia ver nada disso. agora eu sei que o lugar era assim, mas é como se eu tivesse acendido a luz. porque no sonho era muito escuro, e era estar lá, agora é uma imagem contida numa folha, agora é uma ilustração de um livro de ficção, agora é fácil pensar nesse lugar. e eu tinha medo do escuro, do vento, da chuva, do cachorro na casa ao lado, dos fogos de artifício no aniversário dela, da minha mãe não voltar pra casa quando ela se atrasava, de chegar em casa e encontrar ela morta.

contei também daquele outro em que meu tio me levava pra pescar em um pier enorme de alto, muito muito alto, que nem desenho animado, o mar imenso lá embaixo. e eu caía, de repente, caía, flutuava desde lá do alto, vinha girando, os braços suspensos, quantas vezes eu desenhei essa imagem de um corpo caindo? eu devia assistir vertigo e pensar mais sobre essa coisa com a queda, sobre a janela. eu nunca chegava lá embaixo, eu acordava e ainda estava caindo, caía na cama.


caíram os dentes. minha analista quis comparar a queda dos dentes com a queda do pier, eu acho. perder os dentes. uma perda. e aí eu fui longe pra falar da perda. de ter mudado, de ser uma pessoa diferente. mas nem sei se é isso. acho que eu tenho perdas muito mais sérias na minha vida do que uma mudança de personalidade, ainda por cima uma boa. a perda do pai. a perda do romance. a perda na competição social culturalmente instintiva. onde tudo isso se relaciona com as bigornas caindo na caverna, além da queda em si, que só agora me ocorre, é a angústia. a angústia de cair do pier, ou da bigorna cair em mim e me esmagar, ou de caírem os dentes e todos verem, ou de saírem os dreads e alisarem os cabelos com o passar do pente. essa sensação insuportável a que essas associações me levam, essa perda constante que me deixa sozinha, infinitamente e irremediavelmente sozinha.


meu pai nunca vai voltar. eu nao me lembro absolutamente dele e ele nunca vai estar aqui, nunca vai me dizer uma palavra e eu não consigo me lembrar de nada que ele jamais tenha dito, eu não sei como ele era. tudo o que ficou é essa tristeza imensa que nem faz sentido. debulhar-se em lágrimas por alguém que você nem conhece. talvez seja por isso que eu sofra tanto com homens, com a frustração de cada flerte fracassado. eu invento pessoas. tenho que inventar. o único pai que eu tenho é inventado, tem que ser, eu tenho que ter certeza de que ele me amaria, de que ele pode estar em algum lugar, ou aqui do meu lado agora, e de que nós seríamos amigos, melhores amigos, que minha vida teria sido muito mais fácil, confortável e que eu seria de algum modo mais bonita e mais feliz, que a culpa de tudo que deu errado é da crueldade do mundo de meu pai ter morrido quando eu tinha três anos.

eu me agarro a essa perda e justifico com ela tudo o que me perturba. 


aí no fim das contas tudo me parece tão absurdo que eu repiro fundo e já nem me lembro mais. 1 hora de fossa. e deu. há qaue se criar novas expectativas e lidar com as frustrações e se convencer de novas mentiras. se distrair com as grandes e nobres preocupações, se ocupar. sorrir ingenuamente a cada nova piada, se maquiar para sair, acreditar que está quase.



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